Cruella De Vil é uma das personagens mais conhecidas não apenas no panteão Walt Disney, como da indústria do entretenimento. Tendo aparecido pela primeira vez no romance ‘101 Dálmatas’, de Dodie Smith, e depois fazendo sua estreia cinematográfica cinco anos depois através da Casa Mouse, Cruella emergiu como uma das maiores vilãs de todos os tempos e deixou uma impactante marca no show business – participando até mesmo da série ‘Once Upon a Time’ através de Victoria Smurfit. E, em 2021, acompanhando a onda de remakes em live-action da Disney, a antagonista recebeu um filme-solo que se tornou um enorme sucesso de público.
O longa-metragem dirigido por Craig Gillespie é centrado em Estella (Emma Stone), uma ambiciosa garota que, após a trágica morte da mãe, foge para Londres e se junta a dois ladrões chamados Horácio (Paul Walter Hauser) e Jasper (Joel Fry), sobrevivendo através de golpes bem elaborados e que funcionavam através dos incríveis disfarces criados pela jovem. Eventualmente, Estella chama a atenção da impiedosa Baronesa (Emma Thompson), dona do império da moda local e uma das maiores designers da atualidade, começando a trabalhar para ela. Porém, ela descobre que sua maior inspiração para criar vestimentas fabulosas foi responsável pela morte da mãe – colocando-a em um anseio de se vingar que culmina na criação de um alter-ego poderoso e imparável: Cruella de Vil.
Comparando com outros live-actions da Casa Mouse, a obra certamente se destaca por apresentar uma história original que, ao mesmo tempo, mantém relações com as investidas predecessoras: a trama é simples de ser acompanhada e desenrola-se com todos os elementos clássicos do panteão Disney, incluindo a presença de uma narradora e de outros personagens que, aqui, recuam para presenças coadjuvantes – como Anita Darling (Kirby Howell-Baptiste) e Roger Dearly (Kayvan Novak), todos fazendo parte do círculo da Baronesa e de Cruella. E, enquanto o terceiro ato é um tanto quanto frustrante por se apoiar em reviravoltas e explicações ocasionais demais, o resultado é mais que o suficiente para que o coloquemos em repetição e para aproveitar em um final de semana.
Gillespie, que alcançou aclame crítico com a impecável cinebiografia ‘Eu, Tonya’, diverte-se ao encabeçar o projeto e alia-se ao roteiro de Dana Fox e Tony McNamara para fazer jus à personagem titular, pincelando-a com camadas que a destituem do comportamento puramente vilanesco a que estávamos acostumados – e garantindo que Stone brilhe em uma performance aplaudível. Ela não apenas resgata os maneirismos da animação, como presta breves homenagens às incursões que Glenn Close fizera nos filmes de 1996 e de 2000, mas sem deixar de trazer seu próprio entendimento de Cruella. Não é surpresa que inúmeros fãs da produção tenham feito campanha para que Stone fosse indicada ao Oscar por sua irretocável atuação – de longe, o melhor elemento em que Gillespie se apoia.
O verdadeiro embate do enredo emerge com a química entre Stone e Thompson: enquanto Cruella representa uma nova geração que preza pela rebeldia e pela liberdade criativa, a Baronesa permanece fincada a estilos que dialogam apenas com uma elite predatória e que servem como reflexo de caprichos que prenunciam sua ruína. E, nesse quesito, é adorável ver como as duas atrizes roubam os holofotes para si, sejam sozinhas ou dividindo sequências bem construídas que garantem ritmo e dinamismo ao que poderia ser apenas mais um amontoado de convencionalismos sem sentido. À medida que a relação das duas se estreita, nosso interesse em ver como a trama será concluída aumenta – afinal, a Baronesa não tem ideia de que Cruella e Estella são a mesma pessoa (ao menos nos dois primeiros atos do longa).
Se o elenco brilha como uma constelação de supernovas, o aspecto artístico não serve apenas como apoio, e sim como personagem ativo para compreendermos a ideia do projeto. Dessa maneira, a Jenny Beavan mostra conhecimento e liberdade em relação à época em que a história se passa e sabe como contornar fórmulas arcaicas para arquitetar um embate bélico entre a estagnação de um passado cíclico e a vibração vulcânica de uma juventude que se recusa a ficar calada – apostando fichas entre o classicismo das vestimentas da Baronesa e de seus associados e a estética punk-rock eternizada por Vivienne Westwood e Malcolm McLaren nos anos 1970, dando vida a figurinos de tirar o fôlego e que reiteraram a máxima do movimento em questão (“uma proclamação e um abraço da discórdia”). E seu trabalho foi reconhecido ao lhe garantir uma merecida indicação ao Oscar de Melhor Figurino.

‘Cruella’ envelheceu como uma boa garrafa de vinho e, para aqueles que não se apaixonaram pelo filme quando lançado em 2021, sugiro revisitá-lo e apreciá-lo em todos os seus aspectos. Obviamente que certos erros persistem, mas o espectro de não-conformidade e rebeldia defendido pela narrativa, bem como um elenco estelar guiado por Stone, são fortes o suficiente para reiterar seu sucesso e sua beleza incomparáveis.

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