Em uma carreira que se estende por mais de quatro décadas, Nicole Kidman permanece na ativa e envolve-se em projetos que imediatamente conquistam a crítica e o público. Apenas nos últimos anos, Kidman participou de produções como ‘Nine Perfect Strangers’, ‘Expatriados’, ‘Big Little Lies’ e ‘Being the Ricardos’ – todos lhe rendendo aclame por performances incríveis e memoráveis, além de reiterar sua incrível versatilidade artística tanto na televisão quanto no cinema. Agora, Kidman está de volta com o ambicioso thriller erótico ‘Babygirl’ – que já lhe garantiu o prêmio de Melhor Atriz no Festival de Veneza e que a torna uma das favoritas para levar sua segunda estatueta do Oscar para casa.
A trama acompanha Romy Mathis (Kidman), CEO de uma poderosa companhia de automação tecnológica que parece ter tudo o que sempre quis: uma carreira de sucesso, uma família bem constituída, um marido que a ama e uma posição de poder que, mesmo nos dias atuais, se mostra difícil de ser conquistada por profissionais femininas. Porém, ela esconde um segredo que dialoga com seus mais profundos desejos sexuais e com os fetiches que se força a esconder no fundo da mente para não perturbar a calmaria e a complacência que conquistou ao longo dos anos. E as coisas viram de cabeça para baixo quando Romy conhece um dos novos estagiários de sua companhia, o jovem e charmoso Samuel (Harris Dickinson), que desperta nela um lado que acreditava ter sob controle.
O longa-metragem funciona como um suspense erótico de alto calibre que alcança sucesso não apenas pelo modo como é construído, mas pela química inegável e envolvente do elenco protagonista. A narrativa, centrada na exploração dos fetiches e da sexualidade feminina, é uma declamação de afronta a uma sociedade tradicionalista e retrógrada que, em pleno século XXI, se recusa a discorrer sobre os anseios e as pulsões femininas com naturalidade – sempre colocando-as subjugadas ao contínuo poder do homem nas estruturas hierárquicas. Entretanto, a diretora, roteirista e produtora Halina Reijn promove uma inversão de papéis em que, mesmo sem perceber, Romy tem controle sobre tudo – mesmo no momento em que se submete a um jogo de dominação com Samuel.
Reijn, recém-saída do divertido terror cômico ‘Morte Morte Morte’, mostra que não é uma cineasta confinada apenas a um gênero, conseguindo perpassar as mais diversas investidas fílmicas de modo glorioso e narcótico. Nota-se sua preocupação em construir sequências inebriantes, sejam no escopo dramático, no familiar ou no sexual – garantindo que o resultado seja uma expressão reflexiva do que exatamente a protagonista quer e precisa. Aliás, não me surpreenderia se parte do público se sentisse incomodada com a delineação das cenas de sexo, considerando a inexplicável e ridícula ascensão de um puritanismo artístico que condena esses segmentos, taxando-os como desnecessários.
A verdade é que, como os fetiches internalizados por Romy, nem todo momento íntimo tem um objetivo além do visual e imagético – e Reijn arrisca-se a quebrar tabus etaristas em virtude da diferença de idade entre Romy e Samuel. Mais do que isso, ela traz investidas que discorrem sobre a ética no trabalho e a moral matrimonial de modo a focar na individualidade de uma personagem que, caso fosse masculina, não seria martirizada por ir em busca do que quer. E, sim, é notável como o arco de Romy deixa de lado a universalização comunitária em prol de uma defesa egocentrada pela qual tenho certeza de que todos nós já passamos.
Kidman emerge em uma das melhores performances de sua carreira como Romy, deixando-se de levar pela dúbia personalidade que se apodera de sua mente: ela sabe que está no controle de todos os espectros de sua vida, mas não quer estar – ao menos no tocante às explorações sexuais em que mergulha. E é através de uma belíssima acepção da complexidade da psique humana que ela navega entre risos forçados, medo, paixão e libido de uma maneira apaixonante. Dickinson, cujo arco existe em apoio ao de Romy, também faz um trabalho memorável, garantindo que a protagonista seja imbuída com um prazer que nunca sentiu antes, nem mesmo com seu marido de longa data, Jacob (Antonio Banderas).
A beleza da obra não se resume apenas à explicitação das sensações e das emoções, e sim nos detalhes que se escondem à vista de todos, seja na escolha certeira da paleta de cores – que varia entre as vibrantes cores de rosa, vermelho e laranja, e restringe-se à melancolia de tons frios quando Romy começa a questionar sua própria índole -, seja nas breves menções dialógicas que fornecem camadas a personas que poderiam se render aos convencionalismos e às fórmulas do gênero.
‘Babygirl’ é construído com exímia cautela por todos os membros envolvido, à frente ou atrás das câmeras. Heijn tem plena consciência da história que está nos contando e garante que todas as mensagens que deseja passar – ainda que, de modo contraditório, elas não existam – sejam canalizadas para um corpo artístico emocionante, com destaque à fabulosa atuação de Kidman.