No ano de 2024 marca-se os quarenta anos do fim da ditadura militar e o início da redemocratização do país. Mas também lembramos os sessenta anos do início do golpe de estado que, por vinte anos, tomou conta do país com o poderio militar, que perseguiu, torturou, matou e aterrorizou milhares de pessoas no território brasileiro. Até hoje há famílias que buscam notícias de parentes desaparecidos nesse período, ou que buscam justiça e/ou indenização pelo que lhes ocorreu. Até hoje vivemos e convivemos com pessoas que sobreviveram a esse período, bem como também convivemos com pessoas que participaram ativamente dessas ações. Dezenas de histórias desse tempo ainda são desconhecidas, mas uma delas está chegando ao público através do filme brasileiro ‘Ainda Estou Aqui’, que já está em exibição nos cinemas.
No Rio de Janeiro no ano de 1976 a família Rubens Paiva vive contente em seu casarão enorme no bairro de luxo do Leblon, em frente à praia. Enquanto os cinco filhos passam as tardes mergulhando ou jogando bola, Rubens (Selton Mello, de ‘O Auto da Compadecida’) e Eunice (Fernanda Torres, da série ‘Filhos da Pátria’) recebem amigos, ouvem música e almoçam juntos. Era uma vida boa, apesar do contexto da ditadura, até que um dia homens mal-encarados batem à porta e levam Rubens para um interrogatório. E Rubens nunca mais retorna. Diante do desespero de ver-se sozinha de repente e mãe solo de cinco filhos, Eunice buscará forças para tentar encontrar o marido e criar os filhos apesar da fissura que se cria em sua família por causa da ausência de Rubens.
O filme é baseado no livro de Marcelo Rubens Paiva, filho do ex-senador Rubens Paiva que de fato fora levado por militares durante a ditadura e nunca mais foi visto. É importante realçar isso não só pelo fato de a história ser baseada em episódios reais de uma família, mas também de falar sobre uma figura importante da política do país, que foi o senador Rubens Paiva. Mas é legal mencionar isso também porque ao longo das duas horas e dezessete de filme há diversas menções à escrita de Marcelo, seja brincando por causa do seu estilo confuso de escrever, seja com um figurante literalmente lhe pedindo um autógrafo.
Por se passar em três tempos – infância, jovem adulto e adulto – a produção acaba tendo um elenco enorme, com nomes conhecidos do público como Marjorie Estiano, Daniel Dantas, Humberto Carrão e, claro, Fernanda Montenegro. Fernandona, em sua rápida aparição, protagoniza a cena mais intensa do filme, aquela que se você não chorou até aquele momento, bom, é ali que ela te derruba. Mesmo pontual, é a cena de Fernandona que faz a conexão do título e que arremata toda a história.
Nesse elenco enorme, são as mulheres que se destacam. Do núcleo jovem, Bárbara Luz (que faz a Nalu Paiva) chama a atenção pela característica observadora de sua personagem, linkando os acontecimentos sem necessariamente falar em voz alta. E, claro, Fernanda Torres, em seu melhor papel de sua carreira, entregando uma Eunice vibrante em um primeiro momento, que se transforma a partir dos episódios e se torna uma mãe contida, que precisa para sempre reter a enxurrada de emoções para não deixar transbordar aos filhos a tragédia que se abateu na família. Diferentemente de outros filmes dramáticos, em que vemos as personagens sofrerem horrores, a atuação de Fernanda Torres neste é silenciosa, o que torna tudo muito mais difícil pois ela precisa transmitir toda a angústia dessa mãe sem esboçar nenhum fio de desesperança. Não é qualquer um que consegue esse nível de excelência de atuação.
Walter Salles opta por uma direção mais solar do período sombrio da ditadura, com muitas e muitas cenas da família de classe média feliz curtindo momentos de lazer, e o diretor utiliza uma gelatina sépia para caracterizar os anos 1970. É realmente impressionante ver como mãe e filha – Torres e Montenegro – encontram a lente de Walter Salles com muita facilidade, e todo o filme (protagonizado pela fortaleza Torres, com o perdão do trocadilho) se encaminha para uma passagem de bastão de filha para mãe, para uma última e única cena em que Fernanda Montenegro mostra porque é a grande imortal do cinema brasileiro. Ela não precisa de mais, pois recebe a responsabilidade do bastão e entrega tudo sem precisar dizer nada.
‘Ainda Estou Aqui’ opta por contar uma história de resiliência apesar da violência da ditadura. É um filme sobre família, sobre afeto, sobre manter-se unidos e juntos, apesar do terror. Não é sobre quem parte, é sobre quem fica. Merece todos os prêmios que tem ganhado e, sim, tem boas chances de ser indicado ao Oscar, e em mais de uma categoria. Tomara!