Poucas sagas literárias têm o impacto e a importância de ‘O Senhor dos Anéis’: criada pelo icônico J.R.R. Tolkien, as aventuras ambientadas na Terra-média tornaram-se o paradigma de inúmeras narrativas fantásticas – incluindo ‘Game of Thrones’ e ‘Harry Potter’. Não é surpresa que, mesmo depois de diversas adaptações para o cinema e para a televisão, esse universo continue a crescer e a explorar tramas que ainda não foram esquadrinhadas no escopo audiovisual. Agora, somos convidados a conhecer um pequeno pedaço dessa epopeia irretocável com a ambiciosa animação ‘O Senhor dos Anéis: A Guerra dos Rohirrim’.
A trama é ambientada quase dois séculos antes de Frodo Bolseiro e de sua empreitada envolvendo o Um Anel, nos levando a conhecer a história dos governantes de Rohan – em especial o impetuoso Helm Mão-de-Martelo (Brian Cox). Funcionando como o nono rei do território que governa, ele vê seu domínio ser ameaçado por Freca (Shaun Dooley), lorde dos terra-pardenses que não está de acordo com a linha de pensamento de Helm e ousa enfrentá-lo em uma breve batalha. Após vencer o conflito, Wulf (Luke Pasqualino), filho de Freca, jura vingar a morte do pai e a rejeição da princesa Héra (Gaia Wise), filha de Helm, arquitetando um plano que culmina em uma sangrenta guerra.
A partir daí, cabe a Héra ajudar não apenas seu pai a manter o poder, mas proteger o povo de Rohan e garantir que os conflitos não premeditem o fim de uma linhagem real e a ruína de uma cultura que ainda tem muito a deixar como legado. Héra, pintada como uma “arisca” e destemida monarca, emerge como centro de um enredo pautado no coming-of-age e em sua ascensão à independência e à manutenção de uma memória que precisa ser resgatada – como apontado pela narradora da obra, Éowyn (Miranda Otto). E, além de expandir essa mitologia com solidez invejável e atar os eventos à linha do tempo original de Tolkien e dos longas de Peter Jackson, a produção funciona como filme-solo e mostra-se bastante competente (mesmo com alguns erros aqui e ali).
Construir personagens dentro do gênero fantástico costuma ser uma tarefa complicada, principalmente quando há uma necessidade de torná-los mais complexos do que deveriam. Porém, o time de roteiristas formado por Jeffrey Addiss, Will Matthews, Phoebe Gittins e Arty Papageorgiou tem plena noção de que, às vezes, utilizar as fórmulas é a saída mais prática e mais inteligente. Ora, se Jackson deu vida a um modelo a ser seguido nas releituras cinematográficas ou seriadas de Tolkien, a ideia não é superá-lo ou caminhar pelos mesmos passos revolucionários, e sim mostrar que, mesmo dentro de algo conhecido, histórias a serem contadas existem e merecem nossa atenção.
É nesse tocante que o roteiro se preocupa em apostar fichas em um bem-vindo maniqueísmo que cria “tipos sociais” dentro das limitações clássicas da fantasia: em outras palavras, a complexidade desejada pelo público existe nas relações entre seus personagens, e não no que representam. Héra é símbolo da guerreira que, livrando-se de suas amarras, desponta como uma releitura da memorável Éowyn para fazer o que é certo e salvar seu povo – em detrimento de um constante luto que sente pelos sacrifícios do pai e do irmão; em contraposição gritante, Wulf é caracterizado, a princípio, como vítima das circunstâncias, obrigado a se deixar levar pelo caminho da escuridão após ver o pai morrer e transformando-se em um usurpador demagogo que não pensa em nada além de sua vendeta vazia.
Tais arcos são bem conhecidos mesmo nas múltiplas histórias de ‘O Senhor dos Anéis’, mas, de certa maneira, é esse retorno às raízes que chama a atenção dos espectadores e garante nossa total atenção do começo ao fim – além de contar com momentos dramáticos e reflexivos próprios de uma produção desse calibre. No final das contas, é o embate entre o bem e o mal que ansiamos presenciar (e é isso o que ganhamos quando Héra e Wulf se enfrentam em uma epopeica sequência de ação que bebe de confecções similares). E, à medida que essas duas forças opostas ganham momentum, coadjuvantes como Helm, Olwyn (Lorraine Ashbourne) e Fréaláf (Laurence Ubong Williams) irrompem como aliados ou mentores dotados de falhas e acertos que auxiliam no ritmo da obra.
Kenji Kamiyama, conhecido por seu trabalho em ‘Ghost in the Shell’, assume a cadeira de direção e faz questão de usar incursões anteriores para manejar um projeto tão ambicioso quanto esse: afinal, estamos lidando com um anime dentro de um universo já estabelecido – e o cineasta cria um produto digno de aplausos e que funciona como carta de amor a Tolkien e até mesmo a Jackson. O obstáculo principal enfrentado por Kamiyama e por seu habilidoso time é guiar os espectadores através de quase duas horas e vinte de intrincadas investidas – que, volta e meia, se desequilibram e criam excessos que poderiam ser mais bem executados ou até mesmo retirados do corte final.
‘A Guerra dos Rohirrim’ é uma sólida e bem-vinda adição à franquia ‘O Senhor dos Anéis’, abrindo espaço para explorações inéditas que não necessariamente requisitam de conhecimento prévio do público. Prato cheio para os fãs da saga, de animações e de obras épicas, o filme entrega o que promete e nos faz recordar do motivo de adorarmos tanto o universo de Tolkien.